segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

OS PECADOS DO HAITI

“A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras.

Três anos mais tarde, ressuscitou.


Depois de haver posto e retirado tantos ditadores
militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca idéia de querer um país menos injusto.



O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estado-unidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado.

Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder.

O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.

Photo by Alice Smeets


Mais do que o voto, pode o veto.
Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses,
não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição.

E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.



O álibi demográfico


Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti.
Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se.

Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais super povoado das Américas, mas está tão super povoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilometro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está super povoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.



A tradição racista



Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos:

Cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização".

Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a idéia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava.
No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".







Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino.

Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".



A humilhação imperdoável





Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas.

Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco.
Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas.
A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.


O delito da dignidade




Nem sequer Simon Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro.

Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a
Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti.

O governo haitiano havia-lhe entregue sete nave e muitas armas e soldados, com a
única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma idéia que não havia ocorrido ao Libertador.
Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.






Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis.
Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que
destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.”











Texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano
* Tradução publicada no site da Agência Carta Maior,
do original do jornal Brecha 556, Montevideo, 26 de julio de 1996.
* Todas as imagens são da capital Porto Principe, emprestadas da internet.




2 comentários:

JORGE LOEFFLER .'. disse...

Lady Laura o inteligente e arguto Galeano, uma das melhores cabeças deste continente não deve ter esquecido, mas omitiu as passagens nefastas àquele país do Papa Doc e do Baby Doc, duas criaturas abomináveis. Parabéns pelo retorno, pois teu varal arriado já provocava grande saudade entre teus leitores, sendo este um grande admirador teu.

Anônimo disse...

o Escritor Galeano até escreve bem e esse artigo dele eu achei muito bom, porém há vários textos dele que chegam a ser cômicos, pela falta de embasamento e visão polarizada, sendo singelos demais, na tentativa de explicar situações políticas complexas com argumentos e teses simplórias e inacabadas. Você o lê, e tem a falsa impressão de ter descoberto algo fabulosamente esclarecedor e ainda por cima fácil de enteder, genial, não?. É como se fosse o Paulo Coelho da literatura política. (analize friamente o que já leu dele e veja se não concorda)comigo!)