A memória é muito desfocada e isso me agoniza.
Talvez melhor assim do que insistir na opacidade dos nossos tempos de molecagem e sabe lá nem tão inocentes como quisesse a família.
Mas faço um esforço de chocalhar o juízo e vejo com tristeza que muito pouco das ranhuras de minha infância se salvaram, infelizmente. Por que esse nhem-nhem?
Para registrar os assombros dos meus oito anos com os personagens de trajeto. Explico, lembrando antes o padre Antonio Vieira que escreveu que os poetas não precisavam se ater aos compromissos com a verdade, porém com a verossimilhança. Sei que não sou poeta, mas assimilei a idéia como cronista inventariante das nossas ruas de antanho.
Então, será que alguém ainda lembra da Dolfa?
De cor negra, carapinha querendo grisalhar, vinha a pé de Estrela, com sua trouxinha empoeirada sobre o ombro. Atravessava a ponte seca, se desdobrava pelos muros cheios de limo da Rua Bento Rosa e prosseguia a compasso pela várzea dos circos e parques na Borges de Medeiros. Em frente a minha casa, uma paradinha para descanso e pedições. Refeita do longo rumo, engolia uns versos, mirando as lonjuras por entre os olhos amarelos:
E a fonte a cantar
Chuá, chuá
E as águas a correr
Chuê, chuê
Parece que alguém
Que cheio de mágua
Deixasse quem há de dizer
A saudade
No meio das águas
Rolando também.
Chuá, chuá
E as águas a correr
Chuê, chuê
Parece que alguém
Que cheio de mágua
Deixasse quem há de dizer
A saudade
No meio das águas
Rolando também.
Borges de Medeiros, Lajeado, Arquivo Born
Sempre pedia um copo d’água. Bebia devagarzinho e bebia tudo, depois agradecida contava que vinha “antis di ontens lá de outros municips”. Às vezes, conforme suas variações na cabeça, erguia a barra do vestido e mostrava, para nosso assombro envergonhado, as fendas íntimas e desnudas.
Em seguida partia arrastando as chinelas feito uma bocó cochichando sozinha - aqui me valho dos versos de Manoel de Barros - “bobagens profundas” para os postes de Lajeado. Não pense que é preconceito meu: “Bocó” - assegura o poeta – “é um que sabe construir o seu ninho com pouco cisco, é o que gosta de vestir roupa rasgada nas idéias, é o que sempre tem um dom de traste atravessado nele.” Pois então, essa era a Dolfa que, embrabando, jogava pedra e se botava a correr atrás da gurizada naquelas minhas tardes compridas de laço de fita nas tranças.
E ainda tem o Tafú, a Sagrada Família, a Mudinha e o Aldino que ao encontrar meu pai perguntava se ele ainda fumava. “Sim, ainda fumo” – respondia o pai. “Então me dá um cigarro.” – pedia o Aldino se rindo por dentro. E cigarro se dava porque era um tempo em que essas coisas se faziam por bem, não se fazia por mal.
3 comentários:
Tinha também o Gonça e o Hilgard... lembra deles também?
Gonça?
Karla.... nunca ouvi falar...
Quem era?
Era o Gula não
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