terça-feira, 5 de junho de 2012

A LADRA


A história também é escrita por anônimos. 
Sem voz, sem manchetes, sequer um obituário em jornais. 
Tão anônimos que ninguém olha duas vezes. 
Anônimos tão comuns que parecem não ter voz. 
O único holofote que os alcança talvez seja aquele do poste da rua. 
Por isso, ela roubava segundos biográficos de desconhecidos. Em troca, a imortalidade.
Aproximando como quem nada quer, surrupiava familiaridades nos recintos enfumaçados. Na maior cara dura guardava, em folhas de papeis, as promessas tórridas dos amantes e as conversas monossilábicas de casais entediados. Raptava as lágrimas dos traídos e as promessas dos traidores nas mesas dos bares. Saqueava sem dó os infortúnios dos mal amados, as intrigas invejosas das amigas, as fanfarronices dos rapazes embriagados. Uma cerveja, e mais uma, e mais uma enquanto escutava as conversas ao redor. Preenchia a própria solidão com a solidão do microcosmo noturno, alheio aos ouvidos dela.

Foi assim que soube do aborto da Cida e o sumiço do Vítor. 
Dos cheques roubados no escritório do seu Abel. 
Do encontro depois das cinco e meia da Eliana com o Gilmar da prefeitura. 
Do rapaz que sonhava com a sogra, do casal que não suportou nem a própria lua de mel e da mulher que separou do marido porque ela se apaixonara por uma Deisi, amiga de mais de vinte anos -  folhetins dignos de Nelson Rodrigues, aliás completaria 100 anos se vivo fosse.

Naquela sexta-feira de outono saiu para a noite atrás de mais histórias anônimas. 
No bar da rodoviária sentou pertinho de um casal de mais idade. Pediu um chope e um sanduíche de mortadela. Pensou que eles não teriam assunto. Pensou que velhos preservam seus segredos e fastio. Mesmo assim ela aproximou sua cadeira daqueles dois alvos fáceis para um assalto literário.
Cabeças brancas, os dois de mãos dadas, alianças idênticas nos dedos, café na xícara e olho no olho, quando ouviu um tremulo “Ainda estamos bem?”.
A mulher se inclinou e beijando a mão enrugada do homem, concordou com a cabeça. Os dois sorriram. 
E a ladra de histórias percebeu nos olhos do casal um romance e não mais uma crônica de bar. 
E foi isso.

* Minha crônica nos jornais A hora, de Lajeado e Opinião, de Encantado.

Um comentário:

Anônimo disse...

Velhinhos também se amam, ora!