De tantas graças e desgraças que aconteceram no ano passado,
espantos e cores que delinearam os dias e as noites em 2012, tanta bestialidade
humana que quase obscurece a crença na vida, chamou minha atenção a longevidade
de pessoas que viram do palanque o século se exibir. Sem pressa, como Niemeyer
e dona Canô.
O primeiro, pai da arquitetura brasileira.
A segunda, mãe dos cantores Caetano e Maria Bethânia.
Viver até os 105 anos. Você consegue se imaginar?
Uma façanha a caminhada pessoal em paralelo a própria
história do mundo. Presenciar as maiores atrocidades e as maiores descobertas
da humanidade.
Na loteria divina alcançaram a graça de viver com saúde e
lucidez e assim fizeram parte de significantes mudanças seculares. Embora
desconfie que viver tanto pode ser extremamente doloroso.
Sim, ultrapassar um
gráfico secular talvez seja uma espécie de penitência. Minha própria avó
conservou-se até os 102 anos. Irmã, netos e um filho partiram antes.
Estas pessoas que hoje excederam aos 100 anos são pessoas
que nasceram antes da 1ª Guerra Mundial. Um feito arqueológico para meus olhos
comuns e sem expectativa de conviver tanto.
São pessoas que vivenciaram a
Guerra dos Bálcãs e a Revolução Russa que a gente estudava na escola.
São
cidadãos que sofreram a 2ª Guerra Mundial e viram o muro de Berlim levantar e
anos depois cair.
Acompanharam a Guerra do Vietnã e a Guerra Fria pelos
noticiários.
E assistiram embasbacados ao desembarque do homem na lua.
São
contemporâneos de líderes como Mahatma Gandhi e Martin Luther King. Mas também
de Mao Tse-Tung, Stalin e Hitler.
Pasmem, resistiram até mesmo à irmã Lucia, uma das três crianças que viu
Nossa Senhora de Fátima e que por isso mesmo deveria viver muito mais.
Convenhamos que sobreviver a quem viu a Santa nessa vida é para raros.
Quem nasceu em 1907, como dona Canô e Niemeyer, viu passar
ao seu lado o automóvel, o avião e Usain Bolt, o homem mais rápido do mundo e
se maravilhou com as primeiras luzes do cinema e da televisão. Sujou muito dedo
escrevendo cartas com caneta tinteiro, usou as orelhas para segurar a
esferográfica Bic. Se valeu da maquina de escrever Remington e se surpreendeu
com o computador da Apple. Pensando bem, só a Coca-cola é mais antiga que
Niemeyer e dona Canô.
Quem transpôs o século resistiu a Gripe Espanhola, a um
coração novo e a Aids, graças aos antibióticos, vacinas e transplantes. Cem anos e a opção filho sim, filho não
graças à pílula anticoncepcional. Fez companhia a nove papas e ainda
testemunhou o nascimento da Igreja dos Pentecostes.
Sim, viver até aos 105 anos é um assombro.
É se ver no espelho e talvez não se reconhecer.
É de não se lembrar quando surgiram as primeiras rugas, as
deformações da artrose e o entupimento das veias.
É dormir e acordar cada vez mais calado e observador. E
menos rigoroso nas observâncias da vidinha, na certeza absoluta de que dela
nada se leva.
Viver até os cem com sabedoria fascinante e com amor e
gratidão por perto só para alguns.
Ainda são poucos os escolhidos.
Um comentário:
Laura essa crônica “tá demais”. Belíssima retrospectiva. Coisa de “gente grande” mesmo. Parabéns. Por certo parto logo, mas espero que sigas por muito, mas muito mais tempo mesmo, pois tua “cachola” é preciosa demais.
Parabéns?
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