Repeti essa oferta a pedintes, artistas circenses e vendedores ambulantes, pessoas de todas as idades que fazem dos congestionamentos da cidade de São Paulo o cenário de seu ganha-pão.
A idéia surgiu de uma combinação com os colegas de Nova Escola: em vez de dinheiro, eu ofereceria um livro a quem me abordasse - e conferiria as reações.
Em 13 oferecimentos, nenhuma recusa. E houve gente que pediu mais.
Nas ruas, tem de tudo.
No primeiro dia, num cruzamento do Itaim, um bairro nobre, encontrei Vitor *, 20 anos, vendedor de balas. Assim que comecei a falar, ele projetou a cabeça para dentro do veículo e examinou o acervo:
- Tem aí algum do Sidney Sheldon? Era o que eu mais curtia quando estava na cadeia. Foi lá que aprendi a ler.
Na ausência do célebre novelista americano, o critério de seleção se tornou mais simples. Vitor pegou o exemplar mais grosso da caixa e aproveitou para escolher outro - "Esse do castelo, que deve ser de mistério" - para presentear a mulher que o esperava na calçada.
Aos poucos, fui percebendo que o público mais crítico era formado por jovens, como Micaela*, 15 anos.
Ela é parte do contingente de 2 mil ambulantes que batem ponto nos semáforos da cidade, de acordo com números da prefeitura de São Paulo.
Num domingo, enfrentava com paçocas a 1 real uma concorrência que apinhava todos os cruzamentos da avenida Tiradentes, no centro. Fiz a pergunta de sempre. E ela respondeu:
- Hum, depende do livro. Tem algum de literatura?, provocou, antes de se decidir por Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
Érico*, 9 anos, chegou com ar desconfiado pelo lado do passageiro:
- Sabe ler? - perguntei.
- Não... - disse ele, enquanto olhava a caixa. Mas, já prevendo o que poderia ganhar, reformulou a resposta:
- Sim. Sei, sim.
- Em que ano você está?
- Na 4ª B. Tio, você pode dar um para mim e outros para meus amigos? - indagou, apontando para um menino e uma menina, que já se aproximavam.
Esquina após esquina, o enredo se repetia: enquanto eu esperava o sinal abrir, adultos e crianças, sentados no meio-fio, folheavam páginas. Pareciam se esquecer dos produtos, dos malabares, do dinheiro...
- Ganhar um livro é sempre bem-vindo. A literatura é maravilhosa. - explicou, com sensibilidade, um vendedor de raquetes que dão choques em insetos.
Quase chegando ao fim da jornada literária, conheci Maria*. Carregava a pequena Vitória*, 1 ano recém-completado, e cobiçava alguns trocados num canteiro da Zona Norte da cidade.
Ganhou um livro infantil e agradeceu. Avancei dois quarteirões e fiz o retorno. Então, a vi novamente. Ela lia para a menininha no colo.”
* nomes fictícios
Rodrigo Ratier
Na íntegra:
http://revistaescola.abril.com.br/gestao-escolar/diretor/vale-mais-trocado-432764.shtml
* fotos da internet não ilustrativa do texto original.
3 comentários:
Esse relato prova que o homem também tem fome de saber e seja qual for sua condição social alguns sabem como saciar ela.
Meu medo é que essas pessoas que encontramos nos faróis tenham lido mais livros que alguns de meus alunos.
Oi Tonelli,
compactuo do teu receio... Poucos, raros, os alunos q se debruçam sobre um livro. Só na obriga.
É angustiante.
Laura,
Relendo meu comentário posso ter dado margem a uma má interpretação de algum outro leitor.
Quando disse: "Meu medo é que essas pessoas que encontramos nos faróis tenham lido mais livros que alguns de meus alunos." Fico feliz em saber que eles lêem. Tentei referir-me ao fato de que muitos estão afastados da escola, mas lêem. Quando meus alunos com a oportunidade na escola não.
Mas concordo totalmente com você, é angustiante ver que as crianças e adolescentes não estão lendo NADA.
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